Sem salário fixo, ajuda de custo ou registro profissional: o drama dos ‘consultores de venda’ da Direcional Engenharia
Com promessa de ganho certo, empresa coloca ‘consultores’
trabalhando como corretores de imóveis, mas sem registro profissional, o que
não é permitido por lei; ex-funcionários denunciam abusos trabalhistas e contam
como estão respondendo a processo administrativo por exercício ilegal da
profissão
O título do email era “recrutamento”, e a mensagem convocava
para um “processo seletivo” de uma vaga de emprego de uma das maiores
construtoras do Brasil, a Direcional Engenharia, que constrói moradias para o
antigo Minha Casa Minha Vida – hoje batizado de Casa Verde e Amarela. Em plena
pandemia, as vendas da construtora aumentaram 70% no 1º trimestre deste ano.
O “processo seletivo” foi marcado para uma tarde nublada em
uma sala comercial na avenida Paulista, no Centro de São Paulo, em 2019, antes
da pandemia do coronavírus. Cerca de 30 pessoas tomavam seus lugares no que
parecia uma sala de treinamento. Quando a exposição começa, ficamos sabendo que
se trata de uma oportunidade para atuar como “consultores de venda”, vendendo
apartamentos do então Minha Casa Minha Vida. Na prática, seriam todos
corretores de imóveis. A comissão prometida é 1,7% do valor do imóvel. Sem
pagamento mínimo, sem vale transporte ou vale alimentação.
A empresa tenta seduzir os pretendentes ao afirmar que o
valor total esperado das comissões em sua carteira pode chegar a R$ 6 milhões.
Mas mais da metade vai embora após conhecer as condições ofertadas. A outra
metade continua num treinamento de mais dois dias para “virar corretor”. Fui uma
das que continuou no treinamento, e, no terceiro dia, cheguei a ir a um stand
de vendas. Não recebi qualquer ajuda de custo e não vendi nenhum imóvel.
Trabalhei de graça.
Ex-funcionários denunciam abusos trabalhistas por parte da
Direcional e relatam que estão respondendo a processos administrativos por
exercício ilegal da profissão (Ilustração: Rubem Filho)
Uma colega de 18 anos diz que está ali no treinamento porque
precisa trabalhar para pagar sua faculdade, cuja mensalidade custa R$1.700
reais. “Se não conseguir ganhar pelo menos isso por mês, não consigo estudar”,
diz. No entanto, pessoas que seguiram no recrutamento da Direcional Engenharia
e começaram a atuar relatam situações como: falta de pagamento mínimo,
exigência de trabalhar 6 horas por dia (o que
poderia vir a configurar vínculo trabalhista, exigindo carteira
assinada) e até a obrigação de fazer panfletagem de graça para a empresa.
O pior: por terem trabalhado nestas condições e sem registro
profissional do Conselho Regional de Corretores de Imóveis de São Paulo
(Creci-SP), exigido por lei, estes profissionais se expuseram ao risco de serem
multados ou até mesmo presos. Quem trabalha como corretor sem o registro
profissional pode ter que pagar multa de
até R$ 3.260 ou ser detido de 15 dias a três meses, de acordo com a Lei
6.530/1978. Para conseguir o registro, é preciso fazer um curso que pode custar
entre R$ 800 e R$ 2 mil.
A Repórter Brasil apurou que pelo menos três pessoas que
fizeram cursos semelhantes na Direcional e começaram a atuar como corretores de
imóveis estão hoje respondendo a um processo administrativo junto ao Creci –
justamente por terem trabalhado como corretores sem o devido registro.
Fiscalização acompanhada por policiais
“Trabalhei na empresa por três anos, cheguei até o cargo de
gerente. Tudo isso sem ter o Creci [registro obrigatório]. Quando fomos
autuados, a empresa falou que daria todo o suporte, porém, fomos julgados sem
nenhuma ajuda. Estou aguardando o veredicto para ver quanto terei que pagar”,
afirma um ex-funcionário da Direcional, que pediu anonimato com medo de
retaliações.
Ele conta que trabalhou na empresa entre 2017 e 2020 e saiu
antes da pandemia. Nestes anos, “cerca de 80% das pessoas não tinham Creci”,
afirma. No dia da fiscalização na sede da empresa, segundo fontes,
representantes do conselho apareceram acompanhados de policiais, quando pelo
menos seis trabalhadores da Direcional teriam sido autuados.
Agora eles enfrentam, sozinhos, processos gerados por uma
situação na qual, segundo os denunciantes, estavam apenas seguindo as
orientações da própria Direcional. Pela legislação, o conselho também poderia
autuar a Direcional e denunciá-la ao Ministério Público por facilitação ao
exercício ilegal da profissão.
O Creci, no entanto, não respondeu à Repórter Brasil se
também autuou a empresa, alegando que “para acesso a informações de processos
disciplinares, por tramitar os autos em sigilo, é necessário procuração das
partes.”
Um dos focos da Direcional, cujas vendas aumentaram 70% no
primeiro trimestre de 2021, é a construção de moradias para o projeto do
governo Casa Verde e Amarela (Foto: Alexandre Carvalho / A2img)
“O Creci tem muitos processos contra empresas por incentivo
ao exercício ilegal da profissão. É uma atitude lamentável, uma transgressão
moral e ética que pode acabar com o sonho de uma família”, argumenta José
Augusto Viana Neto, presidente do conselho de corretores de São Paulo.
Porém, documentos do órgão revelam que a maioria dos
processos por incentivo ao exercício ilegal da profissão se dá contra pessoas
físicas: há casos em que o gerente, e não a empresa, é autuado. Ou seja, na
prática, o trabalhador está mais exposto do que a empresa.
Katia* trabalhou como vendedora da Direcional em 2019.
“Todos nós iniciávamos como consultores de vendas, e nos prometiam o registro
profissional após o treinamento, só que isso não era verdade. E quando o Creci
fazia fiscalizações, a empresa trancava os ‘corretores’ na sala alegando ser
uma equipe de telemarketing”, conta.
Além dos problemas relacionados à prática indevida da
profissão, outra questão apontada por especialistas é a comissão de 1,7%
oferecida pela empresa. Segundo o Creci, “é prática comum no mercado a comissão
de 6% sobre o valor do negócio. Mas isso deve ser acertado entre o corretor e
seu cliente”.
Sem contar que, da forma como atuam os corretores da
Direcional, há indícios de relação de subordinação, o que pela lei deveria ser
um trabalho com carteira assinada, salário fixo e pagamento de direitos
trabalhistas como férias e 13º. Uma empresa pode vender seus imóveis
diretamente para o cliente, mas se quiser vender por comissão, usando
terceiros, estes devem estar devidamente registrados, afirma o advogado e
professor de Processo Penal da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São
Paulo, Carlos Kauffmann. Vender imóveis mediante comissão sem inscrição no
Creci é uma contravenção penal e o responsável, dentro da empresa envolvida no
esquema, pode responder judicialmente, conclui o especialista.
A advogada e sócia da LBS Advogados, Sarah Raulino, afirma
que esses trabalhadores podem requerer, na Justiça, que a empresa reconheça o
vínculo trabalhista. Além disso, aqueles que sofrem processos administrativos
do Creci podem pedir tanto danos materiais como morais.
Ajuda de custo de R$ 230 em 45 dias
Kátia foi uma das “recrutadas” que se sentiu ludibriada
quando atuou como vendedora para a Direcional Engenharia, sem o registro do
Creci. “Me ofereceram uma ajuda de custo de R$ 230 por 45 dias de trabalho, mas
exigiam que comparecesse todos os dias no stand de vendas e que cumprisse 6
horas de trabalho diário”, afirma. Ela conta que foi obrigada a fazer
telemarketing e propaganda para a empresa. “Nos obrigavam a fazer panfletagem.
Me incomodou porque acho que não era minha obrigação abordar as pessoas na rua.
Minha experiência foi péssima”.
Funcionária contou que quando havia visitas de fiscalização
do Creci no local onde estavam sendo erguidos os prédios, a empresa negava que
os consultores atuavam como corretores, alegando que eles integravam a equipe
de telemarketing (Foto: Divulgação)
Assim como Kátia, todas as pessoas com quem a reportagem
conversou durante o treinamento tinham sido convocadas para a reunião inicial
na construtora por meio do site de empregos www.vagas.com.br. Todo o grupo já
estava há algum tempo desempregado, e ninguém se lembrava de ter se inscrito na
vaga.
Apesar de o “recrutamento” ter acontecido em 2019, antes da
pandemia, a Direcional Engenharia continua convocando pessoas desempregadas em
meio à maior crise sanitária e econômica do país. Agora a convocação parte de
uma subsidiária da empresa, chamada Riva Vendas.
Enquanto há indícios de que alguns trabalhadores da
Direcional teriam sido induzidos a atuarem em desconformidade com a lei (sem
registro profissional) e sem as mínimas garantias trabalhistas, a empresa vem
ampliando seus resultados nos últimos anos, e suas ações na bolsa de valores
seguem em alta mesmo durante a pandemia.
Somente no 4º trimestre do ano passado, a empresa teve lucro
de R$ 44 milhões, aumento de 55% ante igual período de um ano antes. Já o seu
presidente e fundador, Ricardo Valadares Gontijo, foi recebido pelo presidente
Jair Bolsonaro em 2019 – em encontro fora da agenda oficial – para defender a
não liberação do saque do FGTS para a população por conta do impacto que
haveria nas construtoras.
Autônomos?
O corretor de imóveis, quando autônomo e devidamente
registrado no Creci, pode trabalhar em regime 100% comissionado. Ou seja, não
há ilegalidade em contratar corretores pagando somente a comissão, desde que
tenham liberdade para fazer seus horários.
Segundo especialistas ouvidos, não é bem isso que acontece na
Direcional.
“As mensagens [trocadas no grupo de Whatsapp e obtidas pela
Repórter Brasil] demonstram que existe uma coordenação das atividades pela
gerente, uma vez que estabelecem metas, horários, roupas que devem ser
utilizadas: são indícios da existência de um poder de comando exercido sobre as
atividades dos trabalhadores”, afirma Otavio Pinto e Silva, advogado do
Siqueira Castro Advogados e professor de Direito na USP.
Na legislação trabalhista, o vínculo empregatício é
caracterizado pela presença de subordinação, ou seja, tem metas e horários
estabelecidos pelo chefe. “Já o autônomo trabalha na hora que quer, entrega o
serviço e pronto”, afirma a professora Yone Frediani, magistrada aposentada do
Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região e professora da Faap.
“Corretor obrigado a participar de reuniões de trabalho e
plantões, a prestar contas, a cumprir horário e ainda a correr atrás de metas
não é um simples prestador de serviços para imobiliária, mas empregado”, afirma
a decisão de um juiz de outubro de 2017, em um processo que tramita no Tribunal
Regional do Trabalho da 4ª região.
Procurada pela reportagem, a Direcional afirmou que a
empresa “atua com responsabilidade, em cumprimento à legislação” e que não
tolera irregularidades. Informou ainda que “a profissão de corretor de imóveis
é autônoma e prevista expressamente em lei” e que respeita a “a autonomia que
esses profissionais possuem para gerir suas atividades e escolher as empresas
com que atuam”.
A companhia disse também que a remuneração segue os acordos
com os profissionais e as regulações do setor e que “sempre credencia
profissionais”. “Pela natureza da atividade, a profissão de corretor recebe com
frequência candidatos de outras áreas para iniciar a carreira. Na empresa,
candidatos com esse perfil passam por treinamento em que desenvolvem atividades
preparatórias para a corretagem. Durante o período, também são orientados e
recebem apoio, por vezes financeiro, para buscar a qualificação e os registros
exigidos em lei, caso queiram de fato se tornar corretores profissionais”.
Já o Creci-SP informou que não tem a mesma função dos
sindicatos, de negociar honorários e formas de contratação, destacando que o
conselho existe “para fiscalizar e disciplinar o exercício profissional”.
Procurada, a empresa Vagas.com afirmou que “fará a
verificação das práticas relatadas” e “estando em desconformidade com o que
estabelece a legislação trabalhista, adotará as medidas contratuais cabíveis.”
A companhia disse ainda que pede documentação para as empresas-clientes para
validar sua idoneidade e garantir que as vagas anunciadas sejam reais. Leia as
respostas na íntegra.
Falsas promessas
Apesar de a reportagem ter ouvido queixas de
ex-funcionários, há casos de pessoas que foram recrutadas pela Direcional e
acabaram tendo experiências positivas na empresa. Uma delas é Ruth*, que contou
que havia conseguido vender seu primeiro imóvel e que tirou o registro do
Creci, pago pela construtora. Histórias como estas são inclusive usadas como
chamariz na hora do recrutamento.
Patricia*, 29 anos, foi ao recrutamento porque estava há
muito tempo desempregada. Após meses trabalhando de graça, se sentiu
ludibriada. “Ouvindo eles falarem, parece fácil vender um imóvel. Mas claro que
não é como vender roupas ou sapatos”, relata. “Me senti enganada. Falam que
você só não vende se não trabalhar, mas eu trabalhei pra caramba e não deu em
nada”.
Carina*, 57 anos, diz que sentiu desânimo nos 3 meses que
passou como vendedora na Direcional. “É complicado trabalhar sem um ganho
mínimo. Parece que damos murro em ponta de faca. Você tenta, tenta e não há
retorno”. Ela tenta se organizar financeiramente após meses de prejuízo
trabalhando sem receber. “Bate um desespero, é muita pressão psicológica. Para
mim é falta de amor ao ser humano”, conclui, referindo-se à atitude da
Direcional.
Por Tania Pescarini, colaboração para a Repórter Brasil |
07/10/21
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